Wednesday, August 30, 2006

Fuga

Desconforto (sobretudo da alma). Queria ajeitar o cinto, devia estar um buraco mais apertado que o normal. A aeromoça logo veio dizer:
- Mantenha o cinto de segurança até a decolagem, senhor.
- Não, não, é só o cinto da calça.
- O senhor quer tirar a roupa? Vou pedir para que se retire do avião!
- Não! Não será necessário – ia me justificar, mas desisti, as mãos para cima num gesto automático.

Ela se afastou, ainda meio desconfiada. O volume de alguma coisa no meu bolso incomodava, mas antes que eu pudesse verificar, reparei no choro forçado de uma criança, no assento ao lado. O moleque gritava irritantemente sobre como era injusto a irmã fazer tal coisa (não consegui ouvir). Sei que nem com uma lupa eu acharia lágrimas naqueles olhos.

Era um perfeito exemplar da espécie: mentia o choro (seco?) com firmeza, a pouca idade não era obstáculo - tão pequeno e eu já notava claramente traços de egoísmo, falsidade e inveja (nós todos temos nos enganado ao chamar desumanas características tão nossas).

Voltei ao bolso. Ali achei, atrás da máquina de escrever e de um cachimbo que reconheci pelo baixo relevo talhado (que dizia “cachimbo”), a estatueta do Oscar. Fui até lá e dei-a para o garoto:
- Pela sua atuação!

Um sorriso. Aquela sinceridade de criança me doeu a alma como uma traição amorosa. Imediatamente tirei o objeto dourado das mãos dele - começou a chorar, desta vez de verdade. Mal pude suportar aquilo e virei para o lado, disfarçando.

Quis que meu celular tocasse, assim a aeromoça pediria para me chutarem para fora do avião definitivamente. Mas não; nunca me ligam (zona internacional do esquecimento, buscando sinal – sem serviço).

4 Comments:

Blogger A Esquesita said...

Huahuahuahua!
Gostei muito.
Situação altamente inusitada!
Muito bom!

Parabéns!

8:09 PM  
Anonymous Anonymous said...

"zona internacional do esquecimento, buscando sinal – sem serviço"

O que é isso ? Lindo, lindo. Mesmo.

3:00 PM  
Anonymous Anonymous said...

nice.

9:10 AM  
Anonymous Anonymous said...

Muuuuito bom. Duca.
Te descobri e não largo mais.
Isso, claro, até que apareça
uma namorada para matar o
blog. Mas, existe a
clandestinidade e é nela que
deposito minha esperança.

9:33 PM  

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